quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Insónia


Não durmo, nem espero dormir.
Nem na morte espero dormir.

Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Não durmo; não posso ler quando acordo de noite,
Não posso escrever quando acordo de noite,
Não posso pensar quando acordo de noite —
Meu Deus, nem posso sonhar quando acordo de noite!

Ah, o ópio de ser outra pessoa qualquer!

Não durmo, jazo, cadáver acordado, sentindo,
E o meu sentimento é um pensamento vazio.
Passam por mim, transtornadas, coisas que me sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que me não sucederam
— Todas aquelas de que me arrependo e me culpo;
Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo.

Não tenho força para ter energia para acender um cigarro.
Fito a parede fronteira do quarto como se fosse o universo.
Lá fora há o silêncio dessa coisa toda.
Um grande silêncio apavorante noutra ocasião qualquer,
Noutra ocasião qualquer em que eu pudesse sentir.

Estou escrevendo versos realmente simpáticos —
Versos a dizer que não tenho nada que dizer,
Versos a teimar em dizer isso,
Versos, versos, versos, versos, versos...
Tantos versos...
E a verdade toda, e a vida toda fora deles e de mim!

Tenho sono, não durmo, sinto e não sei em que sentir.
Sou uma sensação sem pessoa correspondente,
Uma abstracção de autoconsciência sem de quê,
Salvo o necessário para sentir consciência,
Salvo — sei lá salvo o quê...

Não durmo. Não durmo. Não durmo.
Que grande sono em toda a cabeça e em cima dos olhos e na alma!
Que grande sono em tudo excepto no poder dormir!

Ó madrugada, tardas tanto... Vem...
Vem, inutilmente,
Trazer-me outro dia igual a este, a ser seguido por outra noite igual a esta...
Vem trazer-me a alegria dessa esperança triste,
Porque sempre és alegre, e sempre trazes esperança,
Segundo a velha literatura das sensações.

Vem, traz a esperança, vem, traz a esperança.
O meu cansaço entra pelo colchão dentro.
Doem-me as costas de não estar deitado de lado.
Se estivesse deitado de lado doíam-me as costas de estar deitado de lado.
Vem, madrugada, chega!

Que horas são? Não sei.
Não tenho energia para estender uma mão para o relógio,
Não tenho energia para nada, para mais nada...
Só para estes versos, escritos no dia seguinte.
Sim, escritos no dia seguinte.

Todos os versos são sempre escritos no dia seguinte.
Noite absoluta, sossego absoluto, lá fora.
Paz em toda a Natureza.
A Humanidade repousa e esquece as suas amarguras.
Exactamente.
A Humanidade esquece as suas alegrias e amarguras.
Costuma dizer-se isto.
A Humanidade esquece, sim, a Humanidade esquece,
Mas mesmo acordada a Humanidade esquece.
Exactamente. Mas não durmo.

Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)

13 comentários:

  1. Sono, insónia, fuga, sensações, vazios, letargias, consciência, inconsciência = a Paz.
    Abraço.

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  2. Caro amigo Argos

    Estive ausente por alguns problemas, mas não me esqueço dos amigos do Farol.
    Obrigada pela visita ao Sintonias do Coração 2. Sua presença é sempre bem vinda.
    E ler Álvaro de Campos é sempre um prazer.

    Beijos com meu carinho a todos.

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  3. Argos,
    Esse poema é um elo.
    Gosto dos poemas de Álvaro de Campos.
    Até dar um pouco certo com minhas noites.

    Bjinho amigo.
    Fernanda.

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  4. Oi, Argos:
    Gosto muito dos poemas de Álvaro Campos. Obrigada pela partilha. Boa noite, grande abraço :)

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  5. Hola Alvaro, hay que ver lo que absorve la poesia, nos crea una adicción yo creo más que el tabaco, me levanto y me acuesto pensando en ella, ¿será malo par la salud?....Ha sido un placer leerte de nuevo amigo, gracias siempre un abrazo.

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  6. Hermosísima confesión hecha con la sinceridad que se da casi exclusivamente en soledad.
    Precioso. Gracias por compartir al Sr. de Campos.
    Bicos.

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  7. Argos,

    Simplesmente maravilhoso esse verso de Álvaro em "Pessoa"...o li e reli muitas vezes...
    Ah, o que pensaria o solitário Poeta com tanta melancolia, nos fazendo sentir presente a cada linha...

    Linda postagem!!!!

    Um grande beijo e bom final de semana meus amigos!!!

    Reggina Moon

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  8. Es bellisimo Argos, una publicación preciosa. Siento esta larga ausencia, espero ya quedarme por mucho mas tiempo de nuevo y seguir disfrutando de todos mis amigos como vosotros. Un beso enorme

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  9. Amigo ARGOS,

    si añadimos esa dificultad para conciliar el sueño cuando se debería dormir...
    y con el estrés que genera tb ese insomnio en esta vida de hoy; al final cada dia dormimos menos...no se donde vamos a llegar, tendremos que parar para remediar y dormir, soñar y pensar bien para disfrutar y sanar...

    De este poema me quedo con lo siguiente :

    "Passam por mim, transtornadas, coisas que não são nada,
    E até dessas me arrependo, me culpo, e não durmo."

    Meu amigo, obrigado pela partilha, tb gosto muito dos poemas de Álvaro de Campos (heterónimo de Fernando Pessoa)

    Abraço amigo

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  10. Magnífico poema de Feranando Pessoa.
    sigo enganchada a vuestra luz.
    Un abrazo Argos.

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  11. Versos, versos, versos...necesarios y eternos como Pessoa.
    Maravilloso y único Fernando Pessoa.
    Abrazos para mis tres amigos, por compartir esta mágica luz.
    Carmendy

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  12. Querido amigo

    Que dizer sobre mais uma belíssima escolha quando se trata de Fernando Pessoa?

    Apenas e só te dou uma vez mais os meus parabéns e deixo-te um pequeno excerto que este "Insónia" me fez recordar:

    ...Ah, não poder dormir (eu não sei como,
    verdade o quero) eternamente,
    Acabar não comigo, nem com isto,
    Mas com tudo — causa, efeito, ser...
    Ideias [vãs] que a imaginação
    Vazia dum momento
    Gera sem ilusão, como criança
    Embriagando-se indolentemente
    Do cheiro transitório duma flor...


    Um imenso abraço amigo

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  13. A todos os que partilharam esta "Insónia" comigo o meu muito obrigado e um grande abraço

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