Parte 4
Continuamos com os nossos passeios pelo Parque dos Poetas, ainda na companhia de Fernando Pessoa, mas desta vez com o heterónimo Ricardo Reis.
Fernando Pessoa, tal como fez com os outros heterónimos, criou para Ricardo Reis uma biografia completa e um mapa astral.
De acordo com uma carta de Pessoa a João Simões, o poeta começou a esboçar o heterónimo Ricardo Reis em 1912 quando lhe veio “à ideia escrever uns poemas de índole pagã”, mas seria apenas em 1914 que, “oficialmente”, ele surgiu para completar o trio Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e Ricardo Reis.
Assim, o poeta Ricardo Reis teria nascido no Porto no dia 19 de Setembro de 1887.
Era moreno, de estatura média, mais baixo e mais forte que Caeiro, andava curvado, era magro e tinha a aparência de um judeu português.
Foi educado num colégio de Jesuítas onde recebeu uma sólida educação clássica e latinista, tendo-se formado mais tarde em Medicina.
Abraçava a causa monárquica, tendo por isso de se exilar no Brasil em 1919, após a derrota da rebelião monárquica do Porto contra o regime instaurado em 1910.
Seguidor de Caeiro, como Pessoa e Álvaro de Campos, Ricardo Reis apresenta, contudo, uma poesia muito diferente destes poetas. A sua educação está imbuída de princípios conservadores que são transportados para a sua concepção poética.
Ricardo Reis é marcado por uma profunda simplicidade da concepção da vida, por uma intensa serenidade na aceitação da relatividade de todas as coisas. É adepto do sensacionalismo, que herda do mestre Alberto Caeiro, mas ao aproximá-lo do neoclassicismo manifesta-o num plano distinto. Como refere Fernando Pessoa em “Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação”: “Caeiro tem uma disciplina: as coisas devem ser sentidas tais como são. Ricardo Reis tem outra disciplina diferente: as coisas devem ser sentidas, não só como são, mas também de modo a integrarem-se num certo ideal de medida e regras clássicas.”
À grande questão da indagação do sentido da existência, colocada de forma diversa por cada um dos heterónimos, Ricardo Reis responde com a procura do mais alto, amando o impossível até, procurando como fugir ou fingir de uma realidade terrena que verdadeiramente queria viver eternamente, mas sabe e aceita que a efemeridade é parte da condição humana, que na vida tudo passa e sobre cada momento vivido pesa a sombra da caminhada implacável do Tempo. Para enfrentar esse medo da morte e à semelhança de Caeiro, aceita a ordem das coisas e faz o elogio da vida campestre, indiferente ao social.
Assim, introduz nas suas odes, pastoras como Lídia, Neera ou Cloé para desfrutar de prazeres contemplativos e regrados:
"Prazer, mas devagar, Lídia, que a sorte àqueles
não é grata
Que lhe das mãos arrancam.
Furtivos, retiremos do horto mundo
Os deprendandos pomos.”
“Olho os campos, Neera
Verdes campos, e sinto
Como virá um dia
Em que não mais os veja(…)”
“Não quero, Cloé, teu amor, que oprime
Porque me exige o amor. Quero ser livre.
A esperança é um dever do sentimento.”
Assume o paganismo e utiliza frequentemente elementos mitológicos nos seus poemas. As odes de Ricardo Reis, como as de Píndaro, recorrem sempre aos deuses da mitologia grega. Este paganismo, de carácter erudito, afasta-se da convicção de Alberto Caeiro de que não se deve pensar em Deus. Mas para Ricardo Reis os deuses estão acima de tudo e controlam o destino dos homens:
"Acima da verdade estão os deuses.
Nossa ciência é uma falhada cópia
Da certeza com que eles
Sabem que há o Universo(…)”
Faz dos Gregos o modelo da sabedoria (aceitação fatalista do Destino de uma forma resignada, mas digna e altiva) e do poeta latino Horácio o modelo poético.
Reflecte sobre o fluir do Tempo: tem consciência da dor provocada pela natureza precária do homem, do medo da velhice e da morte.
“De uma só vez recolhe
Quantas flores puderes.
Não dura mais que até à morte o dia(…)
(…)A vida é pouco e cerca-a
A sombra e o sem remédio(…)
(…)Goza este dia como
Se a Vida fosse nele(…)”
Elogia e aplaude o epicurismo e o estoicismo, ou seja, a sabedoria que consiste na aceitação da condição humana, através da disciplina e da razão, em gozar, em viver o momento presente, evitando o sofrimento e aceitando o carácter efémero da vida - o “carpe diem” e o “locus amoenus”.
“Coroai-me de rosas!
Coroai-me em verdade
De rosas!
Quero toda a vida
Feita desta hora
Breve.
Coroai-me de rosas
E de folhas de hera,
E basta!”
“Quer pouco: terás tudo.
Quer nada: serás livre.
O mesmo amor que tenham
Por nós, quer-nos, oprime-nos”
Neoclássico, Ricardo Reis busca o equilíbrio, a "Aurea Mediocritas" (equilíbrio de ouro) tão prezada pelos poetas do século XVIII. A simplicidade de Caeiro deixa de ser natural em Ricardo Reis e passa a ser estudada, forjada através do intelecto:
"Para ser grande, sê inteiro: nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim como em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive."
A sua formação clássica reflecte-se, quer a nível formal, quer a nível dos temas por si tratados e da própria linguagem utilizada, com um purismo que Pessoa considerava exagerado.
A linguagem de Ricardo Reis é clássica, culta, esmerada e sentenciosa, utiliza frequentemente latinismos e o verso branco. Usa um vocabulário erudito e, muito apropriadamente, seus poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe rebuscada. Os poemas de Reis são odes, poemas líricos de tom alegre e entusiástico, cantados pelos gregos, ao som de cítaras ou flautas, em estrofes regulares e variáveis.
Assim, poderemos resumir as suas principais características estilísticas a uma submissão da expressão ao conteúdo, ou seja, a uma ideia perfeita corresponde uma expressão perfeita, à utilização de estrofes regulares em verso decassílabo alternadas, ao verso branco, ao recurso frequente à assonância, à rima interior e à aliteração, ao uso frequente do hipérbato, do gerúndio e do imperativo, à utilização de latinismos, metáforas, comparações, em suma, um estilo muito denso e construído com muito rigor.
“Vive sem horas. Quanto mede pesa,
E quanto pensas mede(…)
(…)Assim teus dias vê(…)”
Para Ricardo Reis a vida deve ser conduzida com calculismo e frieza, alheia a tudo o que a possa agitar. Mas como tudo o que é verdadeiramente humano é forte e perturbante, pelo que o poeta se isola, numa espécie de “cárcere dourado” que o protege de qualquer envolvimento social, moral ou mesmo sentimental, mantendo-o numa filosofia de vida terrivelmente vazia. Esta maneira de encarar a vida vai, como vimos, condicionar a sua poesia que apresenta como principais características temáticas o Epicurismo (procura do viver do prazer), o Estoicismo (crença de que o Homem é insensível a todos os males físicos e morais), o Horacionismo (seguidor literário de Horácio), o Paganismo (crença em vários deuses) e o Neoclassicismo (devido à sua educação clássica e aos estudos sobre Roma e Grécia antigas).
“De Apolo o carro rodou pra fora
Da vista(…)
(…)A flauta calma de Pã(…)”
“Vós que, crentes em Cristos e Marias
Turvais da minha fonte as claras águas
Só para me dizerdes
Que há águas de outra espécie(…)
(…)Deixai-me a Realidade do momento
E os meus deuses tranquilos e imediatos
Que não moram no vago
Mas nos campos e rios.
Deixai-me a vida ir-se pagãmente
Acompanhada plas avenas ténues
Com que os juncos das margens
Se confessam de Pã.
Vivei nos vossos sonhos e deixai-me
O altar imortal onde é meu culto(…)
(…)Ceres, dona dos campos, me console
E Apolo e Vénus, e Urano antigo
E os trovões, com o interesse
De irem da mão de Jove.”
Fernando Pessoa publicou, pela primeira vez, os poemas de Ricardo Reis (vinte odes) em 1924 na revista “Athena”. Depois, entre 1927 e 1930, foram publicadas oito odes na revista “Presença” de Coimbra. Os restantes poemas e a prosa de Ricardo Reis são de publicação póstuma.
Mais alguns poemas (completos):
Uns com os olhos postos no passado
Uns, com os olhos postos no passado,
Vêem o que não vêem: outros, fitos
Os mesmos olhos no futuro,
vêem O que não pode ver-se.
Por que tão longe ir pôr o que está perto -
A segurança nossa? Este é o dia,
Esta é a hora, este o momento, isto
É quem somos, e é tudo.
Perene flui a interminável hora
Que nos confessa nulos. No mesmo hausto
Em que vivemos, morreremos. Colhe
o dia, porque és ele.
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre
Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.
Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.
Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.
Prefiro rosas, meu amor, à pátria
Prefiro rosas, meu amor, à pátria,
E antes magnólias amo
Que a glória e a virtude.
Logo que a vida me não canse, deixo
Que a vida por mim passe
Logo que eu fique o mesmo.
Que importa àquele a quem já nada importa
Que um perca e outro vença,
Se a aurora raia sempre,
Se cada ano com a Primavera
As folhas aparecem
E com o Outono cessam?
E o resto, as outras coisas que os humanos
Acrescentam à vida,
Que me aumentam na alma?
Nada, salvo o desejo de indiferença
E a confiança mole
Na hora fugitiva.
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio
Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).
Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.
Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos.
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.
Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.
Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e caricias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.
Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento —
Este momento em que sossegadamente não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.
Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos
Nem fomos mais do que crianças.
E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim — à beira-rio,
Pagã triste e com flores no
regaço.
Autores do post: Argos e Tétis