Parte 5
Retomando os nossos passeios pelo Parque dos Poetas, vamos agora ficar na companhia de Álvaro de Campos.
A partir da carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro e de outros textos deixados pelo poeta, podemos construir a biografia do heterónimo Álvaro de Campos.
Nascido em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 pelas 13.30h, Álvaro de Campos era alto (1,75m), magro com tendência a curvar-se, tinha o cabelo preto, curto, liso e risca ao lado. Cara rapada, elegante e com um tipo vagamente de judeu português. Usava monóculo.
Completou o liceu em Lisboa e partiu depois para Glasgow, na Escócia, onde frequentou o curso de Engenharia, primeiro Mecânica e posteriormente Naval.
Em Dezembro de 1913, numas férias, fez uma viagem de barco ao Oriente durante a qual terá começado a escrever poesia, daí resultando o “Opiário”, eventualmente escrito no Canal do Suez e dedicado a Mário de Sá-Carneiro.
Residiu e trabalhou durante alguns anos na Inglaterra, regressando de vez em quando a Portugal. Dois desses regressos estão evidentes nos poemas “Lisbon revisited -1923” e “Lisbon revisited -1926”.
Fixou-se definitivamente em Lisboa, sem praticar qualquer actividade profissional para além da poesia, que foi publicando em revistas literárias, e das suas intervenções em polémicas literárias e políticas.
Álvaro de Campos “nasce” quando Fernando Pessoa sente “um impulso para escrever”.
Pessoa considera que Campos se encontra no “extremo oposto, inteiramente oposto, a Ricardo Reis”, embora seja, tal como ele, um discípulo de Caeiro.
A grande viragem na poesia de Álvaro de Campos aconteceu, de acordo com um relato seu, depois de ter conhecido Alberto Caeiro, numa viagem que fez ao Ribatejo. Em Caeiro reconheceu imediatamente o seu Mestre, aquele que o introduziu no universo do sensacionismo. Tornou-se, assim, seu discípulo:
“O que o mestre Caeiro me ensinou foi a ter clareza; equilíbrio, organismo no delírio e no desvairamento, e também me ensinou a não procurar ter filosofia nenhuma, mas com alma.” (in: Páginas Íntimas e de Auto Interpretacão).
Distancia-se, no entanto, muito do objectivismo do mestre Caeiro percepcionando as sensações, distanciando-se do objecto e centrando-se no sujeito. Aproxima-se, assim, de movimentos modernistas como o futurismo e o sensacionismo. E, enquanto Caeiro acolhe tranquilamente as sensações, Campos experimenta-as febrilmente, excessivamente:
“(…)Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.(…)”
Este excesso fá-lo cair numa espécie de apatia melancólica, abúlica, ou num devaneio nostálgico que o aproxima de Pessoa ortónimo com quem partilha o cepticismo, a dor de pensar, a procura do sentido no que está para além da realidade, a fragmentação, a nostalgia da infância irremediavelmente morta. Cai, deste modo, no subjectivismo que acabará por enveredar pela consciência do absurdo, pela experiência do tédio, da desilusão:
“(…)Grandes são os desertos, e tudo é deserto.
Grande é a vida, e não vale a pena haver vida(…)”
e da fadiga:
“O que há em mim é sobretudo cansaço –
Não disto nem daquilo,
Nem sequer de tudo ou de nada:
Cansaço assim mesmo, ele mesmo,
Cansaço.(…)”
Álvaro de Campos é o “filho indisciplinado da sensação” e para ele a sensação é tudo. Porém, não lhe basta a sensação das coisas, o “eu” do poeta tenta totalizar e unir tudo o que tem ou teve existência ou possibilidade de existir.
Os seus versos livres, longos, por vezes prosaicos, exclamativos e eufóricos ou repetitivos e depressivos são o exemplo mais acabado do vanguardismo modernista no qual se espelha um sentir cosmopolita, urbano, febril, nervoso, extrovertido, por vezes insuportavelmente mergulhado no tédio do quotidiano e no anonimato da cidade.
Álvaro de Campos foi o heterónimo que Fernando Pessoa mais publicou e o que apresentou um “crescimento” e “amadurecimento” mais notório. Representa a parte mais audaciosa a que Pessoa se permitiu, através das experiências mais “barulhentas” do futurismo português, inclusive com algumas investidas no campo da acção político-social.
A sua primeira composição data de 1914 e ainda em 12 de Outubro de 1935 assinava poesias, ou seja, pouco antes da morte de Fernando Pessoa, o qual cessara de assinar textos antes de Álvaro de Campos.
Foi na revista “Orpheu”, em 1915, que Fernando Pessoa publicou os primeiros poemas em nome de Álvaro de Campos: “Opiário” e a “Ode Triunfal”, escrita em Londres. No número 2 da mesma revista, publicou a “Ode Marítima” e em 1917 publicou o “Ultimatum”, no “Portugal Futurista”, revista imediatamente apreendida pela polícia.
Na trajectória poética de Álvaro de Campos podemos distinguir três fases:
1ª Fase - Decadentismo
Nesta fase, Álvaro de Campos é influenciado pelo decadentismo simbolista e expressa na sua obra o aborrecimento, o desprazer, a fadiga, a morbidez, o torpor, o tédio e a necessidade de novas sensações.
"É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente(…)"
Traduz a falta de um sentido para a vida e a necessidade de fuga à uniformidade.
É a fase marcada pelo romantismo e simbolismo e nas suas composições encontra-se um rebuscamento, um preciosismo, além da abundância dos símbolos e das imagens.
(…)Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.
Por isso eu tomo ópio.
É um remédio Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio(…)
É a fase do "Opiário" (1914) onde Álvaro de Campos, influenciado pelo simbolismo, ainda metrifica e rima. Escreve quadras, estrofes de quatro versos, de teor autobiográfico mas já se apresentando amargurado e insatisfeito:
"(…)Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmolas às portas da Alegria(…)"
No “Opiário” deixa antever já um cansaço e um sonambulismo poético:
"(…)Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sonambólico(,,,)"
2ª fase- Futurismo/Sensacionismo
É a fase em que Álvaro de Campos envereda pelo futurismo e o sensacionismo e onde há um “aparente” corte com o passado, exprimindo o poeta, em arte, o dinamismo da vida moderna. A sensação tem aqui um lugar de destaque e o vocabulário onomatopaico pretende precisamente exaltar essa modernidade, o futuro, as sensações.
São desta fase, as conhecidas “Ode Triunfal”, “Ode Marítima” e “Ultimatum”, este último um manifesto contra os literatos instalados da época. Em todas estas obras, Álvaro de Campos adopta um estilo febril, entre as máquinas, os motores, a velocidade, a civilização mecânica e industrial e a agitação da cidade. Exalta nos seus poemas, sobretudo na “Ode Triunfal”, o triunfo da máquina, símbolo da vida moderna e da energia mecânica:
“À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica
Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos(…)"
Nota-se uma recusa da parte do poeta pelas verdades definitivas e uma aclamação do progresso técnico.
"(…)Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!(…)"
Também, mais ou menos em sintonia com o futurismo, Álvaro de Campos dá-nos, utilizando a ironia, uma visão da face negativa da civilização industrial, com os escândalos e as corrupções próprias da contemporaneidade:
"(…)escrocs exageradamente bem-vestidos;
Membros evidentes de clubes aristocráticos;
Esquálidas figuras dúbias; chefes de família vagamente felizes
E paternais até na corrente de oiro que atravessa o colete
De algibeira a algibeira!(…)"
"(…)A maravilhosa beleza das corrupções políticas,
Deliciosos escândalos financeiros e diplomáticos,
Agressões políticas nas ruas(…)"
Álvaro de Campos é o poeta que mais expressa os postulados do Sensacionismo, elevando ao excesso aquela ânsia de sentir, de percepcionar toda a complexidade das sensações em toda a sua intensidade e totalidade. São exemplos disso a “Ode Triunfal” e a “Ode Marítima”. Os cinco sentidos estão bem patentes, num excesso de sensações:
“(...)excesso
De expressão de todas as minhas sensações(…)”
Sensações visuais: “(…)À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas(…)”
Sensações auditivas: “(...) r-r-r-r-r-r eterno!(…)”; “(…)De vos ouvir demasiadamente de perto(…)”; “(…)Rugindo, rangendo(…)”
Sensações olfactivas: “(…)A todos os perfumes de óleos e calores e carvões(…)”
Sensações gustativas: “(…)Tenho os lábios secos (...)”
Sensações tácteis: “(…)Fazendo-me um excesso de carícias ao corpo numa só carícia à alma(...)”
É também desta fase a “Saudação a Walt Whitman”. Homenageando o grande escritor norte-americano, Álvaro de Campos, além de se referir ao conhecido homossexualismo de Whitman, de que parece comungar, revela uma das mais fortes influências sobre o seu estilo. Neste poema, três versos dão conta da natureza futurista de que era feito Álvaro de Campos. Assim ele classifica o poeta americano:
“(…)Jean-Jacques Rousseau do mundo que havia de produzir máquina(…)”
“(…)Shakespeare da sensação que começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da Eletricidade futura!(…)”
3ª Fase – Pessimismo
Nesta fase, Álvaro de Campos sente-se amargurado, vazio, um excluído, um incompreendido e escreve poemas pessimistas e desiludidos. Sofre fechado em si mesmo, angustiado e cansado. É incapaz de unificar em si sentimento e pensamento, o mundo exterior e o mundo interior.
É a fase do sono e do cansaço, em que o poeta revela a inadaptação à existência, o cepticismo, a dor de pensar e a nostalgia do passado.
Mas, apesar desta fase parecer um pouco surrealista, é a que se apresenta mais moderna e equilibrada . É nela que se enquadram os poemas:
"Lisbon Revisited", em que predomina o inconformismo:
“Não: não quero nada.Já disse que não quero nada.Não me venham com conclusões!A única conclusão é morrer(…)”
"Apontamento", onde o poeta revela a consciência da fragilidade humana:
“A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso(…)”
"Poema em Linha Recta", em que mostra o desprezo ao suposto mito do heroísmo:
“Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo(…)”
"Aniversário", onde o poeta mostra um enternecimento memorialista:
“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto(...)
(…) Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!(...)”
Esta é a fase de “Tabacaria”, talvez o poema mais conhecido de Álvaro de Campos. O poeta mostra-se amargurado, reflectindo de forma pessimista e desiludida sobre a existência:
“Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo(…)”
Terminamos com este post os passeios pelo “Parque dos Poetas” na companhia d
e Fernando Pessoa e seus heterónimos.
Não queremos, porém, finalizar este “Poeta do Parque” sem aqui deixar duas conclusões a que chegámos quanto à heteronímia de Fernando Pessoa:
- o seu desdobramento em heterónimos não é mais do que um artifício do poeta para exprimir as dilacerantes contradições humanas, agudizadas num pequeno burguês intelectual com uma formação cultural nova na nossa tradição literária e com um psiquismo especial, dotado de grande inteligência e sensibilidade. É por este motivo que se pode sempre reconhecer, com mais ou menos facilidade, por trás de cada máscara, uma ou mais feições do mesmo rosto: o de Fernando Pessoa;
- a genialidade de Fernando Pessoa é grande demais para caber num só poeta. Como bem o sintetizou o seu heterónimo mais atribulado, Álvaro de Campos:
"Quanto mais eu sinta, quanto mais eu sinta como várias pessoas,
Quanto mais personalidades eu tiver,
Quanto mais intensamente, estridentemente as tiver,
Quanto mais simultaneamente sentir com todas elas,
Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,
Estiver, sentir, viver, for,
Mais possuirei a existência total do universo,
Mais completo serei pelo espaço inteiro fora."
Mesa de Fernando Pessoa no Martinho da ArcadaAutores do post: Argos e Tétis