“Calaram-se os poetas, tristemente…
E é desde então que eu choro amargamente
Na minha Torre esguia junto ao Céu!…”
“Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada… a dolorida”
“Poeta, eu sou um cardo desprezado,
A urze que se pisa sob os pés.
Sou como tu, um riso desgraçado!”
Para Florbela a temática da morte encontra-se sempre latente. Ela concebe a vida como uma antecâmara da morte que não escolhe idades:
“É tão triste morrer na minha idade!
……….
E os meus vinte e três anos… (Sou tão nova!)
Dizem baixinho a rir: “Que linda a vida!…
Responde a minha Dor: “Que linda a cova!”
Por outro lado interroga-se sobre a morte:
“O que há depois? Depois?… O azul dos céus?
Um outro mundo? O eterno nada? Deus?
Um abismo? Um castigo? Uma guarida?”
O quotidiano é vivido pela poetisa sob um imenso tédio:
“Essa tristeza
É menos dor intensa que frieza,
É um tédio profundo de viver!
E é tudo sempre o mesmo, eternamente:
o mesmo lago plácido dormente…
E os dias, sempre os mesmos, a correr…”
Mas a temática abordada é sobretudo a amorosa. O que preocupa claramente Florbela é o Amor e os ingredientes que romanticamente lhe são inerentes: solidão, tristeza, saudade, sedução, a evocação da morte e o desejo:
“Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo
Colhe a hora que passa, hora divina,
Bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!
Sinto-me alegre e forte! Sou menina!”
Florbela adopta uma atitude radical que varia constantemente entre a morte que se projecta num elanguescimento dos sentidos, num torpor algo mediúnico e a exaltação do amor que leva ao enlouquecimento do ser. O pendor nocturno revela-se nas tonalidades escolhidas, desde os tons de roxos até aos soturnos negros. A propensão para a morte, a noite, o negrume, a tristeza revela esse desequilíbrio sempre patente entre a morte e o amor:
“Gosto da noite imensa, triste, preta,
Como esta estranha e doida borboleta
Que eu sinto sempre a voltejar em mim!…”
“A noite vai descendo, sempre calma…
Meu doce Amor tu beijas a minh’alma
Beijando nesta hora a minha boca”
As mãos são uma parte do corpo que na poesia de Florbela adquirem uma forte sensualidade e uma conotação erótica. É porém uma sensualidade que tanto pode atingir uma divinização do amor como pode diluir-se numa tristeza de um amor perdido ou não correspondido:
“As tuas mãos tacteiam-me a tremer...
Meu corpo de âmbar, harmonioso e moço,
É como um jasmineiro em alvoroço,
Ébrio de Sol, de aroma, de prazer!”
“Beija-me as mãos, Amor, devagarinho...
Como se os dois nascêssemos irmãos,
Aves, cantando, ao sol, no mesmo ninho...
Beija-mas bem!...Que fantasia louca
Guardar assim, fechados, nestas mãos,
Os beijos que sonhei pra minha boca!...”
Em Florbela ora não interessa o objecto amado mas o acto de amar, tornando-se indiferente quem se ama:
“Eu quero amar, amar perdidamente!
Amar só por amar: Aqui... Além...
Mais Este e Aquele, o Outro e toda a gente...
Amar! Amar! E não amar ninguém!
Recordar? Esquecer? Indiferente?...
Prender ou desprender? É mal? É bem?
Quem disser que se pode amar alguém
Durante a vida inteira é porque mente!”
Ou apresenta-nos um amor mais humano, mais divino, surgindo o homem/Deus:
“O amor dum homem? - Terra tão pisada!
Gota de chuva ao vento baloiçada...
Um homem! - Quando eu sonho o amor dum deus!”
Ou ainda um amor com uma carga erótica muito acentuada mas onde se nota uma mistura de paganismo e religiosidade:
“Ó meu Deus, ó meu dono, ó meu senhor,
Eu te saúdo, olhar do meu olhar,
Fala da minha boca a palpitar,
Gosto das minhas mãos tontas de amor!”
Há ainda outro paradoxo na forma como Florbela se refere ao amor. Nalguns escritos é um sentir exaltado onde o erotismo é componente permanente. Já noutros pretende ser limpo daquilo que na sua época se consideravam “impurezas”. Tudo isto é produto duma moral que interditava à mulher exprimir o seu prazer sexual. As sugestões mais ousadas sobre sexo eram tidas como degradação ou, complacentemente, como provocação.
Porém, não conseguimos obter resposta sobre se Florbela ao escrever aproximando-se do explícito, pretende romper com os comportamentos tidos como convenientes e dentro do moralmente correcto.
Repare-se no soneto “Passeio ao Campo” onde começa:
“Meu Amor! Meu Amante! Meu Amigo!
Colhe a hora que passa, hora divina,
bebe-a dentro de mim, bebe-a comigo!”
e depois de referir a "cinta esbelta e fina..." e outros atributos da sua própria elegância física, continua:
“E à volta, Amor... tornemos, nas alfombras
Dos caminhos selvagens e escuros,
Num astro só as nossas duas sombras...”
Num outro poema:
“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...
…………..
E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...”
O erotismo revela-se em muitos dos seus poemas:
"Sonhei que era a tua amante querida
......................................................
........................................anelante
estava nos teus braços num instante,
fitando com amor os olhos teus”
“Ah, fixar o efémero! Esse instante
Em que o teu beijo sôfrego de amante
Queima o meu corpo frágil de âmbar loiro”
Uma interpretação do conjunto da sua obra leva-nos a pensar que Florbela assumiu uma posição cultural divergente ao contrapor todo o seu erotismo e sensualidade a um sentimento de impureza e de brutalidade que dizia sentir perante o relacionamento sexual. Em algumas partes da sua obra ela apresenta as mulheres como impuras, megeras e outros qualificativos semelhantes.
A Prosa
A prosa de Florbela exprime-se através do conto (em que domina a figura do irmão da poetisa), de um diário, que antecede a sua morte, e em cartas várias.
Ao longo dos seus contos encontram-se frases de grande beleza e força. Nalguns deles Florbela exprime as suas contradições na transição para a libertação da mulher. Permanente é contudo a qualificação que faz em relação às mulheres em que as apresenta ora como puras, ora como impuras, ora como excelentes, ora como megeras.
Nas suas cartas não aparece patente a pretensão da criação literária. Talvez por isso, a par da informação factual, apresentam uma visão muito menos enfeitada e artificiosa da sua vivência. Permitem-nos assim conhecê-la melhor e exprimem estados de alma mais próximos duma humanidade real do que a sua prosa formal e, até, alguns dos seus momentos poéticos.
Algumas peças da sua correspondência são de natureza familiar, outras tratam de questões relacionadas com a sua produção literária, quer num sentido interrogativo quanto à sua qualidade, quer quanto a aspectos mais práticos, como a sua publicação. Nas diferentes manifestações epistolares sobressaem qualidades que nem sempre estão presentes na restante produção em prosa - naturalidade e simplicidade.
No último ano de vida elabora um Diário, onde deixará anotações até escassos dias antes do seu trágico fim.
Logo no início explica não ter qualquer objectivo ao escrevê-lo.
Pouco depois do começo espera que "quando morrer é possível que alguém" ao lê-lo "se debruce com um pouco de piedade, um pouco de compreensão," sobre o que foi ou julgou ser. "E realize o que eu não pude: conhecer-me".
No seu Diário define-se "honesta sem preconceitos, amorosa sem luxúria, casta sem formalidades, recta sem princípios, e sempre viva".
Depois de recordar os nomes de companheiros e mostrar uma vez mais o amor pelo irmão, Apeles, aviador, cujo desaparecimento em desastre do seu avião a faz sentir mais só, diz não compreender o medo que a morte causa à jovem autora de um Diário de que reproduz algumas frases.
Examina-se diante do espelho e dizendo-se "grosseira e feia, grotesca e miserável" põe em dúvida se saberia fazer versos. Colocando-nos uma vez mais em face das contradições que a atormentam permanentemente e que exprime numa outra frase: "Viver é não saber que se vive".
À medida que caminha para o final da vida as anotações são cada vez mais raras e curtas.
Afirma que as cartas de amor que escreveu resultavam apenas da sua necessidade de fazer frases. E em oposição frontal com o escrito páginas atrás refere "se os outros não me conhecem, eu conheço-me".
Poucos dias antes de morrer interroga-se "que importa o que está para além?" Responde, repetindo o que diz no soneto “A um moribundo”:
“Seja o que for, será melhor que o mundo!
Tudo será melhor do que esta vida!...”
Bibliografia (1ªs edições)
"Livro de Mágoas", 1ª edição, Edição da Autora, 1919
"Livro de Soror Saudade", 1ª edição, Lisboa, Edição da Autora, 1923
"Charneca em Flor: sonetos de Florbela Espanca" (edição póstuma), 1ª edição, Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931
"Juvenília: versos inéditos de Florbela Espanca, precedidos dum estudo crítico de Guido Battelli", 1ª edição, Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931
"Cartas de Florbela Espanca a Dona Júlia Alves e a Guido Battelli", 1ª edição, Coimbra, Livraria Gonçalves, 1931
"As Máscaras do Destino, contos", 1ª edição, Porto, Editora Maranus, 1931
"Cartas de Florbela Espanca (e evocação lírica de Florbela Espanca por Azinhal Abelho e José Emídio Amaro)", 1ª edição, Lisboa, Edição dos Autores, s.d.
"Diário do Último Ano (seguido de um poema sem título)", 1ª edição (edição fac-similada), Amadora, Bertrand, 1981
"O Dominó Preto, contos", 1ª edição, Amadora, Bertrand, 1982
Somente duas antologias, “Livro de Mágoas” (1919) e “Livro de Sóror Saudade” (1923), foram publicadas em vida da poetisa. Outras, “Charneca em Flor” (1931), “Juvenília” (1931) e “Reliquiae” (1934) sairam só após o seu falecimento.
Toda a obra poética de Florbela foi reunida por Guido Battelli num volume chamado “Sonetos Completos”, publicado pela primeira vez em 1934. Em 1978 já tinham saído 23 edições do livro. As peças anteriores às primeiras publicações da poetisa foram reconstituídas por Mária Lúcia Dal Farra, que em 1994 editou o texto de “Trocando Olhares”.
Autores: Argos e Tétis