Parte 2
Poeta, contista e ficcionista português, Mário de Sá-Carneiro é um dos grandes expoentes do Modernismo em Portugal e um dos mais reputados membros da Geração d’Orpheu.
Neste segundo passeio pelo Parque dos Poetas, iremos tratar do reflexo da personalidade de Sá-Carneiro em toda a sua obra.
A Personalidade
Na fase inicial da sua obra, Mário de Sá-Carneiro demonstra influências do decadentismo e até do saudosismo, numa estética do vago, do complexo e do metafísico. Adere posteriormente às correntes de vanguarda do paúlismo, do sensacionismo e do interseccionismo, apresentadas por Fernando Pessoa.
O delírio e a confusão dos sentidos são as marcas de uma personalidade exageradamente sensível ao ponto da alucinação, com reflexos numa imagística exuberante. Em toda a obra está patente a sua egolatria, um narcisismo, uma procura de exprimir o inconsciente e a dispersão do eu no mundo, numa tentativa da busca constante do seu próprio eu. Trata-se duma inadaptação, fruto da insatisfação das suas carências, que o irão levar a um sentimento de abandono e a uma poesia auto-sarcástica, expressa em poemas como “Serradura”, “Aqueloutro” ou “Fim”, revendo-se o poeta na imagem de um menino inútil e desajeitado, como em “Caranguejola”:
“Ah, que me metam entre cobertores,
E não me façam mais nada!...
Que a porta do meu quarto fique para sempre fechada,
Que não se abra mesmo para ti se tu lá fores!”
Tudo isto revela uma forte crise de personalidade, traduzida no frenesim da experiência sensorial e no desejo do extravagante. Foram a inadequação, a solidão, a incapacidade de viver e de sentir o que desejava, que o levaram a uma tentativa de dissolução do ser, consumada na morte por suicídio.
A Obra
Embora muito do que Mário de Sá-Carneiro produziu tivesse sido publicado em vida, dispersamente pelas publicações em que participou, como as Revistas “Orpheu” e “Portugal Futurista”, muitos dos seus escritos só viriam a público postumamente.
"Amizade" (1912)Estreia-se na literatura com a peça teatral “Amizade”, cuja autoria divide com o seu colega de liceu, Tomás Cabreira Júnior, que viria a suicidar-se no ano seguinte. Por sorte, na altura, o manuscrito desta peça encontrava-se em poder de Mário de Sá-Carneiro pois, doutra forma não teríamos hoje acesso a ele, já que Tomás Cabreira Júnior destruiu toda a sua obra antes de se suicidar.
"Princípio" (1912)
É um conjunto de contos e novelas, entre os quais “Loucura”, “O Sexto Sentido”, “Diários” e “O Incesto”.
Loucura
“Loucura?! - Mas afinal o que vem a ser a loucura?...Um enigma... Por isso mesmo é que às pessoas enigmáticas, incompreensíveis, se dá o nome de loucos...
Que a loucura, no fundo, é como tantas outras, uma questão de maioria.(...) A maior parte dos homens adoptou um sistema determinado de convenções. É a gente de juízo...Pelo contrário, um número reduzido de indivíduos vê os objectos com outros olhos, chama-lhes outros nomes, pensa de maneiras diferentes, encara a vida de modo diverso. Como estão em minoria...são loucos...”
Incesto
"(…)Um artista pode sofrer muito, ser muito infeliz até à morte. Acredito mesmo que entre os artistas se enfileirem alguns dos grandes desgraçados da terra. No entanto, na desventura de um artista, por mais amarga que ela tenha sido, brilhou sempre um raio de sol. A sua desgraça não foi de certeza a de uma existência vazia e desoladora - que é a maior e mais real miséria deste mundo(…)"
"A Confissão de Lúcio" (1912)
Com este conto, Mário de Sá-Carneiro estreia-se no romance. Trata-se duma obra cuja temática se desenrola à volta do fantástico e se apresenta como marcante de uma época de vanguarda em que Sá-Carneiro se afirmou como um dos expoentes máximos do Modernismo português.
Em “A Confissão de Lúcio”, Mário de Sá-Carneiro explora as sensações experimentadas por todos os sentidos, por meio de elementos sensoriais que vão desde o perfume até à cor. Publicada dois anos antes do escritor se suicidar, a obra tem um enredo inquietante que mexe com o imaginário do leitor. Nela, o personagem principal que é preso e condenado a dez anos de prisão por um crime que não cometeu, acaba por nem saber ao certo se o crime aconteceu de facto. Trata-se duma narrativa curta, toda ela envolta em mistério e que denuncia o momento conturbado por que passava na época o próprio autor. É uma das obras mais importante de Mário de Sá-Carneiro porque nela transparecem três das suas obsessões dominantes: o suicídio, o amor pervertido (homossexualidade) e o anormal, obsessões estas que acabaram por o levar à loucura.
“Ricardo deteve-se um instante, e de súbito, em outro tom: - É isto só: - disse... Não proteste… Eu não sou seu amigo. Nunca soube ter afectos (já lhe contei), apenas ternuras. A amizade máxima, para mim, traduzir-se-ia unicamente pela maior ternura. E uma ternura traz sempre consigo um desejo caricioso: um desejo de beijar… de estreitar… Enfim: de possuir! (…) Para ser amigo de alguém (visto que em mim a ternura equivale à amizade) forçoso me seria antes possuir quem eu estimasse, ou homem ou mulher. Mas uma criatura do nosso sexo, não a podemos possuir…”
"Dispersão" (1914)
É a primeira obra de poesia de Mário de Sá-Carneiro apresentada a público. Composta por doze poemas, a sua primeira edição foi revista pelo autor e por Fernando Pessoa.
A poética de Sá-Carneiro afasta-se aqui de uma preocupação meramente formal da experiência literária, mas nela fundamenta as suas interrogações e a afirmação dos anseios que dão sentido à sua existência mas para as quais não encontra resposta.
Os títulos dos doze poemas de “Dispersão” são: “Partida”, “Escavação”, “Inter-Sonho”, “Álcool”, “Vontade de dormir”, “Dispersão”, “Estátua falsa”, “Quase”, “Como eu não possuo”, “Além-tédio”, “Rodopio” e “A queda”.
Alcool
“(…)Que droga foi a que me inoculei?
Ópio de inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?
Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi álcool mais raro e penetrante:
É só de mim que ando delirante –
Manhã tão forte que me anoiteceu.(…)”
Dispersão
“Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.
Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida... (...)
Desceu-me n'alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.”
"Quase” é talvez o poema de Sá Carneiro que melhor exprime a obsessão do fracasso da existência, sugerindo simultaneamente a vivência ideal através de símbolos e de processos postos em voga pelos decadentistas.
Neste poema manifesta-se esse abismo entre o sentimento do que o poeta julga ser e a incapacidade de alcançar o que deseja, agravado pela circunstância de pouco ter faltado para lá chegar. A primeira e última quadras constituem a chave que explica o motivo de toda a desilusão enunciada no corpo do poema. O poeta não conseguiu ser feliz apenas por lhe faltar só esse “quase” e só por pouco julga não ter chegado aonde o sonho o levou. Faltou pouco para ter vivido o amor e a plenitude e, se a tivesse alcançado, teria transcendido a condição humana para se confundir com o céu e as suas divindades: “Um pouco mais de azul – eu era além”. Daí o seu lamento obsessivo, pois quem não deseja não sofre: “Se ao menos eu permanecesse aquém...”.
Domina-o o sentimento de não ter cumprido o seu destino, destino este de que apenas encontra “indícios”. Assalta-o a sensação de estar fechado dentro de si mesmo, sem poder chegar ao absoluto: “Ogivas para o sol – vejo-as cerradas”. E continua dizendo que não foi capaz de chegar lá, embora estivesse tão perto: “faltou-me um golpe de asa”.
Este é o seu drama real em forma de poema. O drama de ser um falhado na vida, o drama de todas as gerações que se consideram perdidas.
Quase
“Um pouco mais de sol – eu era brasa.
Um pouco mais de azul – eu era além.
Para atingir, faltou-me um golpe de asa…
Se ao mesmos eu permanecesse aquém…
(…)
Num ímpeto difuso de quebranto.
Tudo encetei e nada possuí…
Hoje, de mim, só resta o desencanto
Das coisas que beijei mas não vivi…
"Céu em Fogo" (1915)
Este é mais um conjunto de doze novelas reunidas num volume, onde Mário de Sá-Carneiro revela igualmente todas as perturbações e obsessões já expressas na sua poesia.
Em novelas como "A grande sombra", "O homem dos sonhos", "Eu-próprio o Outro" e "Ressurreição", o duplo que caracteriza Sá-Carneiro manifesta-se nos conflitos psíquicos dos personagens, que expressam a inadaptação social, a crise de identidade e a divisão da personalidade. Os processos de desdobramento vividos pelos personagens fazem parte de uma espécie de processo iniciático ou de auto-conhecimento, despertando neles o duplo sentimento de medo e fascinação. Verifica-se a manifestação do duplo através do sonho, do delírio, da projecção do "eu" no outro, com uma transposição do tempo e espaço convencionais, que conduzem à fragmentação da realidade.
Sá-Carneiro dá-nos nestes textos, ao mesmo tempo complicados e ternos, mas de deslumbrante beleza, uma prosa poética nervosa e desesperada desses loucos anos dos inícios do século XX.
Ressurreição
“(…)Em pequenos, adoecemos gravemente duma enfermidade dolorosa que nos leva às portas da morte -fora até o caso do romancista, aos dois anos, com uma febre tifóide. Essa enfermidade existiu para os outros, que presenciaram as nossas dores, que nos viram sofrer, gritar, febricitar. Porém a realidade é que, embora os nossos gritos, não existiram para nós -porquanto os anos passaram, e nem a mínima reminiscência nos ficou dessas dores, porventura cruciantes.(…)”
O Homem dos Sonhos
“Nunca soube o seu nome. Julgo que era russo, mas não tenho a certeza. Conheci-o em Paris, num Chartier gorduroso de Boul'Mich, nos meus tempos de estudante falido de Medicina.
(…)
E eis como eu pude entrever o infinito. O homem estranho sonhava a vida, vivia o sonho. Nós vivemos o que existe; as coisas belas, só temos força para as sonhar. Enquanto que ele não. Ele derrubara a realidade, condenando-a ao sonho. E vivia o irreal.
Poeira a ascender quimerizada...
Asas d'ouro! Asas d'ouro! ...”
"Indícios de Oiro" (1937)
É talvez o mais significativo conjunto de trabalhos de toda a obra de Sá-Carneiro. Trata-se de uma obra póstuma publicada em 1937 pela revista “Presença”, que conta com 32 poemas autógrafos escritos em vários locais (Paris, Lisboa, Camarate, Barcelona) e em várias datas (1913 Jun. a 1915 Dez.).
Epígrafe
A sala do castelo é deserta e espelhada.
Tenho medo de Mim. Quem sou? Donde cheguei? ...
Aqui, tudo já foi ... Em sombra estilizada,
A cor morreu — e até o ar é uma ruína ...
Vem de Outro tempo a luz que me ilumina —
Um som opaco me dilui em Rei ...
(Paris, 2-7-1914)
Nossa Senhora de Paris
Listas de som avançam para mim a fustigar-me
Em luz.
Todo a vibrar, quero fugir... Onde acoitar-me?...
Os braços duma cruz
Anseiam-se-me, e eu fujo também ao luar
Um cheiro a maresia
Vem-me refrescar,
Longínqua melodia
Toda saudosa a Mar...
Mirtos e tamarindos
Odoram a lonjura;
Resvalam sonhos lindos...
Mas o Oiro não perdura
E a noite cresce agora a desabar catedrais...
Fico sepulto sob círios,
Escureço-me em delírios
Mas ressurjo de Ideais...
– Os meus sentidos a escoarem-se...
Altares e velas...
Orgulho... Estrelas...
Vitrais! Vitrais!
Flores de Lis...
Manchas de cor a ogivarem-se...
As grandes naves a sagrarem-se...
– Nossa Senhora de Paris!...
(Paris, 15-6-1913)
Correspondência
A sua correspondência foi também reunida em volumes póstumos, dela fazendo parte: Cartas a Fernando Pessoa (2 vols., 1958-1959), Cartas de Mário de Sá-Carneiro a Luís de Montalvor, Cândia Ramos, Alfredo Guisado e José Pacheco (1977) e Correspondência Inédita de Mário de Sá-Carneiro a Fernando Pessoa (1980).
A leitura e análise das "Cartas a Fernando Pessoa" são fundamentais para o bom entendimento de toda a obra de Mário de Sá Carneiro.
Traduções
De Mário de Sá-Carneiro existe ainda uma tradução, em parceria com António Ponce de Leão, da peça “Les Fossiles”, de François de Curel.
Mário de Sá-Carneiro foi um homem insatisfeito e inconformista que nunca se conseguiu entender com a maior parte dos que o rodeavam, nem tão pouco ajustar-se à vida prática, devido às suas dificuldades emocionais. Foi também um incompreendido, pelo modo como os seus contemporâneos olhavam a sua poesia. Porém, profetizou acertadamente que no futuro se faria jus à sua obra e nisso não falhou.
Com efeito, reconhecido no seu tempo apenas por uma fina élite, à medida que a sua obra e correspondência foram sendo publicadas, tornou-se acessível e aceite pelo grande público, sendo actualmente considerado um dos maiores expoentes da literatura moderna em língua portuguesa.
Embora não tenha a mesma repercussão de Fernando Pessoa, a sua genialidade é tão grande, senão mesmo maior que a de Pessoa mas, porém, muito mais próxima da loucura que a do seu grande amigo. Fernando Pessoa foi, na realidade o seu único amigo, aquele que o compreendeu e ajudou conforme pôde. Foi a ele que Sá-Carneiro escreveu um bilhete antes de se suicidar:"Um grande, grande adeus do seu amigo Mário de Sá-Carneiro”.
Para os leitores e para o consenso literário, a contradição em Sá-Carneiro é profunda. Longe de não ter alcançado o que desejava, longe de lhe ter faltado só um “quase” para chegar ao seu destino, Mário de Sá-Carneiro voou muito para além do que sonhou. A sua obra é plena, grande, genial, de uma beleza.